segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

nos anos 10 as coisas eram mais simples


Dia 31 de Dezembro de 2010



Uma praia qualquer, 23h46

A excitação do momento ultrapassava qualquer barreira para o pequeno. A queima de fogos era a “coisa mais bonita que ele tinha visto”, na virada do ano passado. E ele estava ansioso por essa, que prometeram ser ainda maior. “Década nova” lhe disseram, sem que ele sequer tivesse completado uma dessas de vida.


Carro, no meio do engarrafamento na estrada, 23h47

A menina já tinha ficado muito irritada. Passar a virada do ano parada na estrada não era o plano que ela tinha na cabeça. Nem do seu pai, nem de sua mãe, muito menos de sua vó, que estavam igualmente estacionados contra a vontade.
Os guardas rodoviários acenavam com lanternas verdes e vermelhas qual lado deveria seguir e qual deveria parar.


Rave, 23h51

A festa estava só no começo. A batida reverberada fazia tremer todas as caixas toráxicas num raio de um quilometro. A sensação desagradava, a primeira vista, mas ”com algumas balas” a promessa era de que melhorasse bastante. O jovem nunca tinha provado e achou que seria um bom jeito de começar o ano.


Quitinete, 23h53

O homem passa os canais chuviscados da sua televisão preto e branco até encontrar algo que sintonizasse. O show da virada não era sua melhor opção, mas sim a única que ele tinha. Encheu seu copo de conhaque, olhou para o relógio de pulso, e separou o celular com cuidado. Sentou na poltrona, esperando.

  
Praia, 23h53

O garoto olha pro céu, hipnotizado. Não queria perder nenhum instantezinho, por isso “já ia ficar olhando bem antes”. “Pai, falta muito?” Puxando a calça com a mão. “Quase filho, faltam 6 minutos, mas fica de olho bem aberto que eles costumam soltar uns ant... olha lá!”
O menino não se cabia em emoção, soltaram alguns poucos fogos de artíficio, mas todos aqueles laranjas, rosas e verdes encheram seus olhos e seu sorriso que ele já sabia - não podia piscar nenhuma vez até que toda aquela magia se fizesse no céu.
“Quer um guaranazinho” e ele nem ouvia. Atento.


Congestionamento, 23h54

_ “Vamos pra praia, vai dar tempo, patati, patatá, argh! Que ideia ridícula! “
_ A ideia foi sua, Joana.
_ ...
_ e têm mais, acho melhor sossegar o pito e aproveitar o momento, não quero virar o ano dando bronca por meninice
_ ...
_Isso mesmo, vou pegar a champanhe no porta-malas, deve estar quente, mas... melhor do que nada
_...
_ Olha Joana, não adianta chorar o leite derramado, já estamos aqui, não temos o que fazer. Esse pessoal aí da frente buzinando sem parar? O que eles ganham com isso? Tão com pressa do quê? Faltam 5 pra meia-noite, agora tanto faz, vamos festejar, mesmo que seja aqui
_...
_ É verdade minha neta, sabe que em tantos anos que já vivi essa é a virada mais diferente que já passei, hehehehe, temos que saber tirar o que tem de bom nela e...


Rave, 23h57

Ele conhecia o ritmo acelerado das raves, mas não imaginava que encontraria doce tão depressa. Comprou alguns com os amigos e os separou pra tomar 0h em ponto. Queria que fosse como num ritual. O música batendo no peito e a droga correndo no sangue. A euforia era tanta que ao tentar acompanhar a batida, deixou cair os pequenos pedaços de alegria que ele acabará de pagar. Direto pro chão, procurar as balas coloridas, tinha 3 minutos, e não podia deixar passar.


Quitinete, 23h58

_ É foi melhor ligar um pouco antes, as linhas ficam congestionadas daqui a pouco... Também queria estar aí com vocês... mas ano que vêm a gente tá junto. Foi uma emergência, era o jeito... É eu sei... Te amo também viu, meu bem? Boa virada pra vocês aí, manda um beijo pra suas irmãs. Deixa falar um pouco com o Pedro... ô filhão, papai tá com saudade também! Ó cuida bem da mamãe aí, hein? Tô chegando, amanhã mesmo já vou te dar um abração daqueles, tá bem? Hehehehe, tá legal! Pode deixar! Um beijão meu filho, papai te ama, viu? Feliz ano novo! Até ano que vêm, hehehehe. Tchau!

Desligou o celular e observou o relógio. Faltando 1 minuto para a meia-noite, colocou mais gelo no  copo. E sentou-se novamente em frente a televisão.


Rave, 0h

A busca foi desesperada, em meio a tantos pés, grama e terra, achou os pequenos comprimidos a tempo. Em quanto a batida eletrônica se misturava ao som dos rojões que vinham da cidade, fechou os olhos e jogou a bala pela garganta. Dançou os rojões e pulou no contra-tempo. Não sabia se já era o efeito da droga ou se era só a agitação de ter conseguido completar seu ritual inventado de entrada de década. Só não teve dúvidas depois que abriu os olhos e viu o cabelo da sua amiga Green, que agora estava branco. A bala era mais doce do que ele imaginava.


Congestionamento, 0h

_Feliz Ano Novo, filhota!
O abraço em família foi melhor do que Joana esperava. Ela até começou a gostar daquela virada inesperada. Só não ia admitir isso pra ninguém tão cedo. Mas dava pra ver no seu sorriso discreto. O momento só foi atrapalhado pelo aumento ainda mais inesperado do buzinaço e o barulho de rojão que não era rojão. Houve uma batida e um engavetamento no trecho impedido da estrada. As luzes vermelhas e verdes se tornaram brancas. Ninguém estava entendendo nada. Nem o pai, nem a mãe, nem a vó, nem Joana.


Praia, 0h

O menino não piscou o olho em momento algum. E a meia noite em ponto soltaram-se todos os fogos de artificio que ele tanto esperou. A alegria não cabia dentro dele e só aumentou quando todas aquelas cores foram mudando e ficando brancas e cinzas. Achou aquilo muito mais bonito que da vez anterior. Mas ao olhar pro seu pai, querendo falar o quanto tinha achado lindso os fogos prateados, notou que o pai “que tava vermelho igual um camarão” também tinha ficado cinza e que seu chinelo azul agora era quase preto. Ele imaginou que talvez pudesse ser por ter ficado tanto tempo com os olhos abertos, sem piscar. Mas ele não achou ruim. Ficou feliz, achou muito mais bonito esse mundo em preto e branco.


Quitinete, 0h01

Olhando sem muita atenção o show da virada na TV, não sabia distinguir muito bem o que eram fogos de artifício e o que era chuvisco da transmissão. Tomou mais um gole de conhaque e olhou no relógio: meia noite e dois. Deu uma risada por ter perdido o momento, pensou na esposa, no filho e falou pra si: “...e um feliz ano novo” brindando com o vento do ventilador de teto.

5 comentários:

Quirino disse...

Que bonito Andrézão! Vários momentos de um mesmo instante!
Eu passei o ano novo tão longe que nem barulho de rojão eu ouvi!

Clá disse...

tenso!
esse foi o sentimento que tive qdo li!
nao sei se era a intenção mas o texto foi sufocando, e sufocando e ai acaba! ehehhe
andre e seus sentimentos nos textos!
muito bom!

parabéns!

Diego Belini disse...

cinzas?

nunca vi fogos ficarem cinza...

Bem legal o texto, bem legal mesmo... Também achei meio tenso...

Liene Saddi disse...

tem uma coisa que acabei de notar, relendo pela enésima vez esse texto: que tenho dificuldade em imaginar a noite em preto-e-branco, porque quase tudo já está nos tons de preto e sombras... então a maior parte das coisas que ficou preto-e-branco foram justamente as luzes, dos carros, dos fogos, e da televisão, tudo isso que o homem inventou e botou cor.

Lindo demais, moço. :)

carlosdias disse...

excelente ritmo, excelentes momentos e um excelente argumento para um excelente texto =)